O acesso a medicamentos é uma das principais reclamações levadas à Justiça pelos brasileiros, especialmente quando se trata de remédios para tratar doenças raras ou oncológicas. A entrada acelerada de novas tecnologias no mercado nacional não está diretamente ligada à garantia de eficácia, pondera a médica Clarice Petramale. Com larga experiência em gestão pública, tendo presidido a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) e atuando atualmente como assessora especial da Presidência do Conselho Federal de Medicina, a especialista destaca que a flexibilização regulatória definida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária tem estimulado a comercialização precoce desses medicamentos no Brasil.
Integrante do Comitê Executivo Nacional do Fórum Nacional do Poder Judiciário da Saúde, Clarice Petramale acredita que é preciso aprofundar as discussões sobre a inserção de inovações tecnológicas no sistema de saúde, uma vez que, pela norma atual definida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), é possível autorizar o registro de medicamentos sem que o produto seja suficientemente testado quanto à sua eficácia e segurança. Isso porque as resoluções da Diretoria Colegiada 204 e 205 aceitam estudos aprovados por agências reguladoras internacionais, mesmo que ainda não tenham sido finalizados. Além disso, dispensa a realização de pesquisas no Brasil.
De acordo com a médica Clarice Petramale, a harmonização das normas da Anvisa às medidas já praticadas pela agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, a Food and Drug Administration (FDA), tem estimulado a comercialização precoce desses medicamentos. Nos EUA, por causa dessa política de incentivos, mais de 40% dos novos registros realizados a cada ano no país são de drogas para doenças raras e câncer. “A situação brasileira é bem diferente daquela que prevalece em países da Europa, no Japão ou nos EUA. O Brasil não produz inovação radical, nosso parque farmacêutico produz cópias, similares, genéricos e medicamentos com inovação apenas incremental, como apresentações mais convenientes e associações de fármacos. A falta de evidências científicas sobre o benefício e a segurança desses novos remédios vai sobrecarregar os médicos assistentes, a Conitec e o próprio doente, que, em muitas situações, estará à mercê do acaso para o seu tratamento”, disse.
Além disso, ainda há a preocupação de que o registro especial dos medicamentos não tem deflagrado contrapartidas compatíveis, como a obrigatoriedade de que o fabricante beneficiado com o registro realize pesquisas clínicas em território nacional que complementem as evidências sobre o medicamento, reduzindo as incertezas de benefício e riscos. Segundo levantamento feito pelo Fórum Nacional da Saúde, a Anvisa recebeu 52 novas indicações oncológicas de medicamentos inovadores e 23 novos medicamentos para doenças raras entre 2017 e 2018.
Investimentos em inovações
Clarice Petramale afirma ainda que os novos registros serão um grande desafio para a Conitec, isso porque a comissão baseia a avaliação de novas tecnologias em estudos comprobatórios de eficácia e segurança. O regulamento da Comissão exige, ainda, que o impacto econômico dessas incorporações seja avaliado, preparando o poder público para enfrentar o acréscimo de gastos relacionados. Esse déficit pode afetar não apenas as contas, como também a saúde dos pacientes. “As doenças raras, em sua maioria, são genéticas, crônicas, incapacitantes, mas não letais, cujos tratamentos podem ultrapassar R$ 1 milhão por paciente/ano. Se todos os medicamentos forem incorporados, em poucos anos serão impagáveis para qualquer sistema de saúde, até nos países de economia mais desenvolvida”, disse.
Na saúde privada, por sua vez, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) atualiza o rol de procedimentos a cada dois anos, tempo considerado longo demais para acompanhar a entrada de inovação no mercado brasileiro. Se persistir esse modelo de avaliação, espera-se aumento expressivo da judicialização no setor, pois os beneficiários possivelmente recorrerão à Justiça para obtê-los. “O Fórum Nacional da Saúde pode ser a instância catalizadora das discussões entre os vários atores que compõem essa complexa equação que visa, no final das contas, o acesso oportuno e sustentável da população a tratamentos comprovadamente eficazes e seguros”, ressalta Clarice.
O Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Saúde tem reforçado os debates sobre o processo brasileiro de regulação de medicamentos e produtos, avaliando os impactos da nova regulação da Anvisa para a incorporação de novas tecnologias no SUS, no setor privado de saúde e também no Judiciário. “Por ser uma instância que congrega os diversos atores dessa equação complexa que reúne acesso e sustentabilidade, o Fórum Nacional de Saúde tem papel inestimável na articulação dessas discussões. Muitos cursos realizados nas escolas de magistratura têm levado essa temática aos juízes, promotores e defensores públicos. Além disso, a estratégia dos Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus) e a elaboração de pareceres técnico científicos sobre as novas tecnologias têm sido subsídios importantes à decisão do juiz nas matérias da saúde”, argumenta a médica.